ÚLTIMOS MOMENTOS DE D. JOÃO II

 
"São edificantes os últimos momentos [de D. João II]. Ergue-se o Rei penitente, o que traz o cilício junto à carne. Privado da companhia da Rainha Dona Leonor e do bastardo D. Jorge, que se acham longe, acaba entre alguns prelados e fidalgos seus familiares. Ao Bispo do Algarve, que sabe mau cumpridor dos deveres clericais, faz um pedido solene: - "Por amor de mim, vivei d'aqui por adiante bem e a serviço de Deus, e dai-me vossa fé de o fazerdes assi". E o Bispo lha dá e ele lhe toma a mão de o cumprir - acrescenta o Cronista.
 
Ensaiam os amigos palavras de conforto. O Rei, num ataque de choro, atalha: - "Não me conforteis, que eu fui máo bicho que nunca me acenaram que não mordesse...". Como o tratam por Alteza, protesta: - "Não me chameis Alteza, que não sou senão um saco de terra e bichos". 

Na hora derradeira, o Soberano absoluto, o severo e inflexível juiz, o sonhador de impérios, refugia-se nas altas paragens da inteira humildade, contempla, já próximo, o seu radioso Senhor e Criador: ante a Divina Majestade curva a fronte dolorosa, revela a alma contrita. Enche-o a noção profunda do bem e do mal, do sentido total dos destinos e das responsabilidades, da miséria do homem - "saco de terra e bichos" - frente ao esplendor puríssimo de Deus. Francisco da Cunha, da Ilha Terceira, pede-lhe derradeira mercê - pelas Cinco Chagas. Exânime, num sorriso, o Rei concede-lha e diz: - "Já posso agora isto descobrir: nunca em minha vida me pediram cousa à honra das Cinco Chagas que a não fizesse".

Depois quer saber em que ponta está a maré e anuncia: - "Daqui a duas horas me finarei". Tomam-no violentos soluços; sente na boca terrível amargor, e queixa-se aflito. Do lado, observa-lhe o Bispo de Coimbra: - "Senhor, lembre-vos o vinagre azedo que deram a beber a Nosso Senhor Jesus Cristo estando na Cruz, e não vos amargará a boca". E Dom João, num transporte beatífico: - "Oh Bispo, quanto vos agradeço isso, porque só esse passo da Paixão me esquecia!"...

Entra logo a seguir na agonia, entre orações e expressões de fé. As palavras de despedida são de quem se entrega a Cristo por completo - se olha em Cristo como num espelho, a reviver jubiloso os passos do Gólgota. Nunca tanto como nessa hora merece Dom João ser chamado com justiça (segundo Lope de Vega, repita-se, mais do que segundo Maquiavelo) - o Príncipe Perfeito." (in história de Portugal, João Ameal)

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