O PADRE-NOSSO - A MODIFICAÇÃO INTRODUZIDA (III)

(continuação da II parte)

§ III

Pelo exposto vê-se que só na língua francesa, há hesitação entre dívida e ofensa. E digo hesitação, porque o uso simultâneo dos dois termo, embora pretenda fundar-se numa sinonímia, muito discutível aliás, prova que não há fixidez.

Admitamos, porém, que em francês, dette e offense são sinónimos. E basta consultar-se um bom dicionário da língua, para se ver que o não são. Mas admitamos que o são. 

Sê-lo-ão também em português?

Já li que em vez de ofensas, melhor seria dizer-se pecados, e assim teríamos que dívida = pecado.

Tanto a noção filosófica como a noção teológica do Pecado são coisas complexas de mais, para que as aborde, neste momento.

Mas se posso pedir indistintamente a Deus que nos perdoe os nossos pecados, ou que nos perdoe as nossas dívidas, porque não traduziu a Vulgata o grego opheilema para peccatum, e só reservou este termo para o grego de hamartía de S. Lucas?

Loisy ensina que "le mot opheilema... se prend ici pour synonyme de hamartía" (Les Évangiles synoptiques, I, pág. 606).

Porque não empregou o tradutor de S. Mateus o termo hamartía, nos lugares em que se refere a dívida, ou obrigação contraída, e porque não usou do termo opheilema, quando falou em pecado?

Se os dois textos, o de S. Mateus e o de S. Lucas, são substancialmente iguais; se este não é mais do que um resumo legítimo daquele; se no texto de S. Mateus não se contém substancialmente nada mais do que no texto de S. Lucas, porque não adoptou a Igreja o texto deste, onde se fala precisamente em pecado, hamartía?

Mas se tivermos em contra a definição que de pecado dá Sto. Agostinho na sua fórmula clássica e modelar - "Peccatum est dictum vel factum vel concupitum contra legem aeternam", nós podemos dizer que opheilema = hamartía, e que, consequentemente, poderemos pedir a Deus que nos perdoe os nossos pecados, como nós perdoamos àqueles que pecam contra nós?

Empregando hamartía na primeira parte da frase, e opheilonti na segunda parte, não quis S. Lucas distinguir o pecado da obrigação? [1]

Pedindo a Deus que nos perdoe o que lhe devemos (pecados e faltas) como perdoámos aos nossos semelhantes o que estes nos devem a nós (obrigações), que não estaremos mais próximos do sentido que nos dá o texto de S. Mateus? Pedindo a Deus que nos perdoe as nossas ofensas (ou pecados), como nós perdoámos aos que nos ofendem (ou pecam contra nós), não corremos o risco duma equiparação como que sacrílega, por que identificamos o que é devido a Deus com o que nos é devido a nós?

Dívida é um termo genérico, amplo, elástico, onde cabem pecados, quási pecados, ou para-pecados,o ou imperfeições, numa palavra, tudo quanto constitua dever ou obrigação para com outrem - Deus ou a criatura.

Chamo a atenção para o texto já citado da Regra de S. Bento, em que o tradutor explica que por dívidas, devem entender-se "desfalecimentos e errores".

Pedindo a Deus que nos perdoe as dívidas que Lhe devemos, como nós perdoámos as dívidas que nos devem a nós, convenientemente esclarecidos, saberemos o que, sob o termo dívidas, está na alçada do perdão de Deus, e o que está ao alcance do perdão dos homens. Como podemos fazê-lo, ou como poderemos fazê-lo, em relação ao termo pecado, cuja noção substancial implica a infracção da Lei eterna?

Pois não é verdade que, quando se ensina a oração se ensina ao mesmo tempo que, no quarto pedido, o "pão quotidiano" não é só o pão que nos alimenta materialmente, mas tudo o que é necessário à existência?

O que é certo é que há seis séculos que nós pedimos a Deus que nos perdoe as nossas dívidas como nós perdoamos aos nossos devedores, respeitando a tradução da Vulgata do texto grego do Evangelho segundo S. Mateus.

No que me parece que se devia insistir era no carácter colectivo da oração dominical que muita gente supõe ser oração apenas pessoal ou individual.

Sempre que cada um de nós reza o Pai Nosso, não fala só em seu nome próprio, mas sim em nome de todos os Cristãos, como tão luminosamente o ensinou S. Cipriano, quando diz que o Senhor "unum enim orare pro omnibus voluit, quoniam in uno omnes ipse portavit".

Nisso me parece que se devia insistir, de preferência a modificarem-se os termos da Oração dominical. Porque já um simples camponês me perguntou se "até agora se tem rezado mal", presumo a inquietação que deve ter entrado em tantas almas, ao verem que o Pai-Nosso que lhe ensinaram não serve, e ao interrogarem-se a si próprias sobre o tempo que durará a vigência ou préstimo da nova forma.

Nós os medianamente cultos, não ignoramos o debate travado à volta das vantagens ou desvantagens da oração livre, em face da oração estereotipada, ou seja da oração espontânea, que traduza o impulso momentâneo do coração de quem reza, e da oração formulada, decorada, e, portanto, mais intelectual que efectiva. Mas o homem singelo, o carvoeiro, de cuja fé tanto se desdenha agora, esse fica-se embaraçado e doente, se vê que o Padre-Nosso que lhe ensinaram já não presta, e suspeita de que o que aprende agora não prestará um dia.

Cumpre notar-se ainda que a fórmula da Oração dominical foi Nosso Senhor quem a estabeleceu - no dialecto de que se servia, mas de que nós, infelizmente, desconhecemos os termos.

Aceitado o texto de S. Mateus, na versão grega conhecida, - creio que em todas as línguas [2] através ou não da Vulgata, se fixou um fórmula. Há vantagem em mexer nesta?



[1] Nunca encontro, como tradução de pecado, outra palavra que não seja hamartia: por exemplo em S. Marcos II, 5, 6, 8 1 10; e o hamártema de III, 28 corresponde ao hamartia. Excepcionalmente, paraptôma: no Didaché, IV, 14; XVI, 1; em S. Marcos, XI, 25. 

[2] A Princesa de la Tour d' Auvergne, Aurelia de Bosse, fundou, salvo erro, no monte Olivete, um mosteiro para as carmelitas, em cujo claustro se lê, em quadros de mosaico, e em trinta e cinco idiomas, a Oração dominical. Gostaria de, até onde chegassem as minhas poucas luzes, fazer o estudo comparativo dessas versões.

(para continuar)

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