Sta. Teresa de Ávila, Doutora da Igreja |
§ 2.º
Nós dizíamos, dissemos sempre: "perdoai-nos as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nosso devedores".
Pretende-se agora que digamos: "perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido".
Ofensa e dívida são sinónimos? Devedor e ofensor são sinónimos?
Em primeiro lugar, não há sinónimos.
Toda a ofensa é dívida; mas nem toda a dívida é ofensa.
A ofensa implica propósito*, intenção de magoar; a dívida pode ser inocente.
Quando peço um livro emprestado, fico na obrigação ou dívida de o restituir; não há ofensa; se desconto uma letra num Banco, contraio a obrigação ou dívida de a resgatar; não há ofensa; se me confiam uma coisa para a dar a outrem, estou em dívida para com este, mas não há ofensa; como inquilino, devo a renda ao senhorio; enquanto lha não pago, dentro do prazo legar, não o ofendo. Se todos estes credores me perdoarem aquelas dívidas - não me perdoam as ofensas. Pedindo a Deus que nos perdoe as nossas dívidas, peço-lhe que nos perdoe tudo quanto fizemos, e não devíamos fazer, ou ou tudo quanto devíamos fazer, e não fizemos. Pedindo a Deus que nos perdoe as nossas ofensas, peço-lhe que nos perdoe aquilo que, com maldade intencional, lhe fizemos.
Na dívida, inclui-se o que é ofensivo e o que o não é; na ofensa, há um quid que não caracteriza toda a dívida.
Na ofensa, há mais e há menos; e é muito difícil saber-se onde ela começa.
Na dívida, não há gradação qualitativa. A dívida é o que se deve, - seja pouco, seja muito, à superfície, ou em profundidade.
S. Tomás ensinava que o Padre-Nosso era a oração perfeita por excelência: "oratio dominica perfectíssima est" (Sum. Theologica, II.ª da II.ª, questão 83, art. 9.ª in. c. a.).
É pena que haja hesitações, quer em relação ao texto, quer em relação ao lugar em que foi formulada pelo Senhor. E mais de lastimar é que só em S. Mateus e em S. Lucas ela se encontre.
De que termos se serviu Jesus, ao ensinar-nos como devíamos rezar?
Ao que parece, Ele falava o aramaico. Mas o que nós possuímos é a versão grega das suas palavras.
Em que língua ou dialecto foi escrito o Evangelho segundo S. Mateus? É um problema. O que nós temos hoje não é o original, mas a versão em grego popular ou familiar.
Temos que reportar-nos a ela.
Essa oração excepcional, repito, não a reproduzem nem Marcos nem João. Em Marcos só há uma alusão muito vaga ao quinto pedido do Pater (XI, 25). Apenas Mateus e Lucas nos dão conta dela. Mateus, em texto que devemos considerar integral (VI. 9-13); Lucas, em texto que deve ser resumo (XI, 2-4).
Substancialmente idêntica, num e noutro, a Igreja adoptou o texto de Mateus.
Ora o tradutor de S. Mateus emprega o termo opheilema e opheilétes que designam, sem sombra de dúvida, dívida e devedor.
Na parábola do Devedor (XVIII, 23-25), o tradutor de S. Mateus emprega sempre termos que dependem de opheilô.
S. Lucas distingue: fala em pecado, hamartía; e em opheilonti, os que nos devem (XI, 4).
Quando S. Paulo nos ensina que a quem tem obras, o salário não se contra por favor, mas sim pelo que é devido, sempre o termo opheilema (Pros Romaioys, IV, 4); e quando nos manda dar a todos o que lhes é devido, diz: "apódote pasi tas opheilás" (idem, XIII, 7); e quando, logo a seguir, nos ordena que não devamos nada a ninguém, é opheilete que usa (idem, idem, 8).
Podia multiplicar os exemplos - mas estes bastam.
S. Mateus, através do tradutor, usa, para designar o pecado, a palavra hamartía - menos em dois lugares: no cap. VI, 15, onde emprega a expressão paraptôma.
Assim parece que entre o hamartía e a opheilema, há diferença de que se não pode prescindir. E a Vulgata, onde encontra o opheilema, traduz para debitum; e onde encontra hamartía, verte para peccatum.
Ora o latim não confunde debitum e peccatum.
Segundo a Vulgata, o texto de S. Mateus é: "Et dimitte nobis debita nostra, sicut erat nos dimittimus debitoribus nostris".
Giovanni Diodati traduziu para italiano: "E rimettici i nostri debiti, come noi ancora rimettiano a nostri debitori".
Os italianos também distinguem; e tanto que na versão de S. Lucas, eles escrevem: "E rimettici i nostri peccati".
Os tradutores ingleses escrevem: "And forgive us our debts, as we forgive our debtors"; e do texto de S. Lucas dão esta versão: "And forgive us our sins". Debt e sin são palavras diversas, de significado diverso.
Lutero traduziu o texto de S. Mateus: "Und vergib uns unsere Schulden, wie wir unsern Schuldigern vergeben".
Também ele distinguiu a dívida do pecado ou ofensa, porque diante do texto de S. Lucas, traduz: "Und vergib uns unsre Sünden".
É certo que, no alemão, a palavra Schuld tem um significado muito amplo - que vai desde a dívida ao pecado; mas não é menos certo que o termo Sünde tem um sentido restritivo: pecado, iniquidade, ofensa. E Lutero adoptando este, ao traduzir o texto de Lucas, cingiu-se ao significado próprio da palavra grega hamartía.
De Valera, o famoso tradutor castelhano, entendeu o texto de S. Mateus desta forma: "Y perdónanos nuestras deudas, como también nosotros perdonamos á nuestros deudores".
Igualmente para Cipriano de Valera, deuda e pecado são palavras distintas a designar ideias distintas. E assim, do texto de Lucas, dá esta versão: "Y perdónanos nuestros pecados..."
A Bíblia do Urso, de 1569, no texto de S. Mateus, traduz: "y sueltanos nuestras deudas, como tambien nosotros soltamos á nuestros deudores".
Santa Teresa, no seu notável comentário, traduz o texto de S. Mateus: "Y perdónanos, señor, nuestras deudas, asi como nosotros las perdonamos a nuestros deudores" (Camino de perfección, cap. 36).
Tôrres Amat traduziu o texto de S. Mateus: Y perdónanos nuestras deudas, asi como nosotros perdonamos a nustros deudores"; e o de S. Lucas: "Y perdónanos nuestros pecados...".
Em português, a versão mais antiga que conheço é da Regra de S. Bento, nos princípios do séc. XIV, se é que não é anterior: "...na qual dizem Senhor, perdoa a nos as nossas dividas, assi como nos perdoamos aos nosso deuedores, quer dizer, perdoa-nos os nossos desfalecimentos e errores assim como nos perdoamos aos que nos erraron." (Regra de S. Bento, cap. 31; edição de J. J. Nunes).
Segue-se a de João Claro [1] (sécs. XV - XVI): "...rogamos-te que nos perdoes as nossas dividas,s. nossos pecados, assi como nós perdoamos aos nossos devedores..." (in- Colecção de Inéditos portugueses dos sécs. XIV-XV, 1, pág.218).
João de Barros traduziu: "E perdoa-nos nossas diuidas, assi como nós perdoamos aos nossos devedores" (Cartinha, pág. 14, da edição de 1785).
Ferreira de Almeida que, como é sabido, fez tradução pessoal, deu assim o texto de S. Mateus: "E perdoa-nos nossas dívidas, assi como nós perdoamos a os nossos devedores" (edição de Londres, 1819). E o de S. Lucas: "E perdoa-nos nossos pecados...".
O Pe. António Pereira de Figueiredo traduziu o texto de S. Mateus: "E perdoa-nos as nossas dívidas assim como nós também perdoamos aos nossos devedores" (edição de 1818, tomo VI, pág. 23). E o de S. Lucas: "E perdoa-nos os nossos pecados..." (idem, pág. 262).
E em francês?
E em francês?
Em francês, há variantes.
Louis Segond traduziu o texto de S. Mateus assim: "pardonne-nous nos offenses, comme nous aussi pardonnos à ceux qui nous ont offensés" .E o de S. Lucas: "pardonne-nous nos péchés, car nous aussi nous pardonnons à quiconque nous offense".
Pe. Garrigou-Lagrange O.P. grande referência para os estudos na FSSPX traduz "dívidas" |
Louis Segond traduziu o texto de S. Mateus assim: "pardonne-nous nos offenses, comme nous aussi pardonnos à ceux qui nous ont offensés" .E o de S. Lucas: "pardonne-nous nos péchés, car nous aussi nous pardonnons à quiconque nous offense".
Mas o Pe. Crampon traduz de S. Mateus: "Remettez-nous nos dettes, comme nous remettons les leurs à ceux qui nous doivent". E S. Lucas: "et remettez-nous nos offenses, car nous remettons nous-mêmes à tous ceux qui nous doivent".
O tradutor do Didaché: "Remets-nous notre dette comme nous remettons aussi la leur à nos debiteurs".
O Pe. Lagrange, O. P., um dos primeiros exegetas contemporâneos, traduziu o texto de S. Mateus, desta forma: "et remettez-nous nos dettes, comme nous-mêmes remettons à ceux quis nous doivent" (Évangile selon St. Matthieu, pág. 131; L'Évangile de Jésus Christ, pág. 321).
E ao de S. Lucas tradu-lo assim: "et remettez-nous nos péchés..." (Évangile selon Saint Luc, pág. 323).
D. Gaspar Lefebvre, quando fornece as orações da manhã, traduz o texto de S. Mateus: "Pardonnez-nous nos offenses, comme nous pardonnons à ceux qui nous ont offensés" (Missel quotidien et vespéral, pág. 44).
O Pe. Didon traduz o mesmo texto: "Remettez-nous nos dettes, comme nous remettons les leus à ceux quis nous doivent" (Jésus Christ, I, pág. 331).
O Pe. Pègues, o grande comentador de S. Tomás, dá, do texto de S. Mateus, duas versões: "Remettez-nous nos dettes, comme nous remettons les leurs à ceuz quis nous doivent" (Somme Théologique, II IIª, questão 83, artigo 16; IIIª, questão 84, art. 10; Suplemento, questão 99, artigo 5).
E "Pardonnez-nous nos offenses comme nous pardonnons à ceuz qui nous ont offensés" (Jésus Christ dans l'Évangile, I, pág. 35).
O Pe. Ferdinand Prat, S. J., alegando que "offense et dette sont synonimes", confessa no entanto, que "littéralement, il faudrait traduire: «Remettez-nous nos dettes, comme nous avons aussi remis à nos débiteus»" (Jésus Christ, I, pág.35).
O Pe. A. Tanquerey traduz: "pardonnez-nous nos péchés comme nous pardonnos à ceux qui nous ont offensés" (Précis de théologie ascétique et Mystique, §516).
O Pe. Lavergne, dominicano, traduz os dois textos, o de S. Mateus e o de S. Lucas: "et remettez-nous nos dettes comme (car, em S. Lucas) nous-mêmes remettons à ceux (à tous ceux, em S. Lucas) qui nous doivent" (Synopse des quatre évangiles, §160).
Não aceito sem reservas, a afirmação de que offense e dette sejam sinónimos; mas que o sejam, a tradução literal, na opinião do Padre Prat, devia dar-nos dette; e é evidente que as traduções literais são de preferir às traduções literárias.
[1] Não tomo em consideração a que Barbosa Machado atribui a um Zacarias de Paio Pele, em sua Biblioteca Lusitana, porque mesmo na hipótese de que os Dez mandamentos que son dictos moraaes e naturaaes fossem desse inidentificativo cisterciense, estávamos diante de uma tradução literária, mais interpretativa do que outra coisa, como homem pode ver na Colecção de Inéditos portugueses dos sécs. XIV e XV, pág. 142.
O Catecismo de D. Diogo Ortiz, tão gabado por Cenáculo, é posterior ao texto de Fr. João Claro. Presumo que a da Regra de S. Bento é, efectivamente, a versão mais antiga da matéria que me interessa.
[*nota fidelissimus: pode o leitor ficar confuso neste ponto porque o autor não especifica se a ofensa é em sentido geral. ou apenas a Deus, etc. . De qualquer forma, o desenvolvimento clarifica.]
[1] Não tomo em consideração a que Barbosa Machado atribui a um Zacarias de Paio Pele, em sua Biblioteca Lusitana, porque mesmo na hipótese de que os Dez mandamentos que son dictos moraaes e naturaaes fossem desse inidentificativo cisterciense, estávamos diante de uma tradução literária, mais interpretativa do que outra coisa, como homem pode ver na Colecção de Inéditos portugueses dos sécs. XIV e XV, pág. 142.
O Catecismo de D. Diogo Ortiz, tão gabado por Cenáculo, é posterior ao texto de Fr. João Claro. Presumo que a da Regra de S. Bento é, efectivamente, a versão mais antiga da matéria que me interessa.
[*nota fidelissimus: pode o leitor ficar confuso neste ponto porque o autor não especifica se a ofensa é em sentido geral. ou apenas a Deus, etc. . De qualquer forma, o desenvolvimento clarifica.]
(eis a continuação na III parte)
Sem comentários:
Enviar um comentário